Uma autoimagem vale mais que mil palavras
- Marcelo Cardoso
- 19 de ago. de 2016
- 3 min de leitura
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Tudo começou analisando desenhos e programas infantis a que minha sobrinha assiste. Notei que não havia diversidade de pessoas, eram todas iguais, mais especificamente, todas brancas. Por causa disso, surgiu a vontade de presentear minha sobrinha com um livro que representasse alguma diversidade, e passei, então, a procurar na literatura infantil representações de pessoas negras.
Passei a procurar por algum livro cujo negro fosse o protagonista. Mais do que isso, não queria que a questão da cor da personagem fosse o foco da historinha, queria encontrar um livro com uma historia como qualquer outra que tinha lido na minha infância, mas que a personagem principal fosse da cor preta. Dei-me conta de que nos livros que li quando criança não havia personagens negros, muito menos protagonistas.
Na primeira livraria que entrei fui direto para a sessão infantil. Folheei, folheei e folheei...vários livrinhos. Só havia gente branca nas ilustrações, gente branca e loira em sua maioria. Angustiei-me e fui pesquisar na internet, achei alguns poucos títulos e fui até a atendente perguntar se havia algum exemplar à venda. Depois da atendente pesquisar pelos nomes que eu havia ditado em voz alta e não encontrar nenhum no estoque, resolvi esclarecer num pedido de ajuda: “Estou procurando um livro infantil cujo protagonista seja negro, recomenda algum titulo?”
A atendente (negra) não conhecia nenhum e saiu perguntando e mobilizando a livraria para dar conta da questão. E foi assim que de uma a uma ela foi perguntando às outras funcionárias: “Você conhece algum livro infantil com protagonista negro?”. Depois de consultar mais três atendentes (todas negras) e ter recebido balançares de cabeças de um lado para o outro em sinal negativo (uma sugeriu que eu buscasse na internet, outra sugeriu as historias do Saci que também não havia na loja) ela rendeu-se à falta, sucumbiu à ausência perturbadora e se aquietou novamente.
Para meu horror, numa segunda loja, o atendente me indicou um livro cujos personagens estavam acorrentados, uma terrível mensagem de que protagonista negro só pode ser escravo.
Não sou negro e, apesar de conhecer e teorizar o racismo, nunca o tinha vivido. Não que eu tenha sofrido o racismo desta vez (por mais que eu me esforce em me colocar no lugar de alguém, nunca poderei sentir realmente o que o outro sente), mas acredito que a experiência foi o mais próximo que senti do racismo em minha própria pele branca. Não pude deixar de pensar no que seria se minha sobrinha fosse negra, que tipo de referências culturais, arquetípicas, ela teria para se espelhar e construir sua autoestima e seu lugar no mundo. Ou, caso eu tenha filhos negros, como seria criar uma criança num mundo que referencia uma tonalidade só?
Para mim, o que restou desta experiência foi um misto de raiva e de tristeza. Só sei que não consigo parar de pensar naquelas atendentes que não conheciam uma historia sequer de suas infâncias com as quais pudessem se identificar plenamente e se angustiaram com o questionamento que eu havia lançado diante de seus olhos. Não tenho a exata noção do que se deram conta naquela ocasião em meio a mais um dia de trabalho cansativo de um domingo à tarde, mas, de qualquer forma, e, apesar da resposta não encontrada, acabaram por se acalmar e eliminar o sentimento de desconforto ao se autoconduzirem com perfeição ao ritmo ideal do trabalho e da rotina: vamos pôr fim ao questionamento e vida que segue.
Porém, o incomodo em mim permanece e não deixo de levantar infinitas interrogações. E, apesar de tentar ilustrar tal imagem usando de toda minha capacidade de imaginação, não consigo ter a verdadeira dimensão da crueldade que é crescer sonhando com historias protagonizadas por outrem.
Como é?
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